Antes de ir em missão, Sónia Sousa conversou com a filha, Maiara, de sete anos. Falou-lhe sobre a guerra na Ucrânia porque é “importante saber o que se passa no mundo”. A menina, que ficou aos cuidados da avó, não gostou da ideia, mas quando a mãe regressou tudo mudou. Numa entrevista exclusiva à SIC Mulher, a especialista em enfermagem na Pessoa em Situação Crítica conta-nos tudo sobre os dias emotivos que viveu na Roménia.
No dia 9 de março, a enfermeira de 40 anos iniciou a viagem até ao país que faz fronteira com a Ucrânia juntamente com os restantes membros da equipa médica pro bono da Ocean Medical. A missão, liderada pelo vice-presidente da Câmara Municipal de Cascais, Miguel Pinto Luz, teve a duração de seis dias. Juntos, conseguiram fazer a diferença na vida de 229 pessoas.
“Tendo em conta a quantidade de pessoas, o facto de existirem muitas crianças, sendo que muitas delas teriam andado dias e dias ao frio e com carências alimentares, e haver a possibilidade de existirem pessoas já de idade, a Câmara Municipal de Cascais contactou a Ocean Medical, que já tinha colaborado durante a pandemia, na parte da vacinação e da testagem, no sentido de perceber se existia disponibilidade de enviar uma equipa médica a acompanhar a missão. Foram dois enfermeiros e dois médicos, todos com experiência na área de emergência com a especificidade de um dos médicos ser pediatra intensivista“, explica Sónia.
O papel de Sónia, enquanto enfermeira, era fazer a avaliação dos refugiados ucranianos que iriam trazer para Portugal, prestar os cuidados de saúde necessários e realizar a testagem para a Covid-19. E assim foi. Embarcou por volta das 5h da manhã com a restante equipa, com escala em Madrid.
Uma nova realidade
Já em Bucareste, capital da Roménia, foram recebidos pela família Pragosa. “É uma família instalada na Roménia já há muitos anos, com muitos contactos junto de empresas e de municípios que nos ajudaram. Foram uma ajuda absolutamente imprescindível para termos não só os transportes, mas também alojamento. Têm feito imenso voluntariado na Roménia”, conta.
No dia seguinte, as equipas dividiram-se. “Metade [da equipa] foi para Siret. Fizemos uma viagem de cerca de 7 horas de carro até Siret, até à fronteira. Chegámos já de noite. E a outra parte da equipa ficou em Bucareste a começar a preparar os locais onde iríamos receber os refugiados, quer os que iríamos trazer de Siret, quer os que iriam ter diretamente a Bucareste. A grande maioria das pessoas, na verdade, já estavam na Roménia. Iam ter diretamente à Universidade Politécnica de Bucareste, ao dormitório”, diz.
“Quinta-feira à noite fizemos o primeiro reconhecimento da fronteira, dos campos de refugiados. Fomos recebidos pelo Coronel que estava a comandar o teatro de operações naquela zona. Apresentámos a nossa missão, a nossa equipa, o que tínhamos para oferecer em Portugal, de que forma os iríamos transportar“, conta. A enfermeira destaca que há um grande controlo sobre o tráfico humano. “Passámos por três controlos policiais e, portanto, se não tivéssemos o nome do Coronel provavelmente nem conseguíamos chegar à fronteira“, afirma.
“O Coronel mostrou-nos como estavam organizados, o circuito de entrada deles, as condições que ofereciam. Os romenos estão com uma preparação e uma resposta absolutamente louvável“, destaca.
Chegada a sexta-feira, foram prestados vários cuidados de saúde a pessoas que iam passando a fronteira e, posteriormente, o acompanhamento até ao campo de refugiados. “As pessoas atravessavam a fronteira só para fugir à guerra. Então e agora para onde vai? ‘Não sei’. Mas conhece alguém na Europa? ‘Nada’. Havia pessoas que não tinham mesmo para onde ir e que acabaram por vir connosco”, conta.
A resiliência de um povo
Sónia Sousa recorda, com emoção, o que os refugiados lhe contaram sobre o que viveram na Ucrânia, que está em guerra desde o dia 24 de fevereiro. “Falaram sobretudo do que deixaram para trás. Uma pessoa contou sobre a dificuldade que foi chegar à fronteira, dos dias a andarem a pé, de dormirem em celeiros. Outras pessoas tentaram vir de carro, foram abordadas pelas tropas russas e tiveram que apagar do telemóvel tudo o que fossem imagens da destruição no país. Tentaram vir por estradas muito secundárias no meio do campo fazendo com que a viagem demorasse muito mais tempo”, relembra.
“Tínhamos duas meninas, de 21 e 23 anos, que vieram absolutamente sozinhas, sem conhecerem ninguém. Deixaram lá os pais, que as obrigaram a vir. Não conheciam ninguém em Portugal. Tivemos imensas mães que deixaram lá os maridos, algumas que deixaram o marido e o filho maior de 18 anos, outras que vieram com o filho e trouxeram a sogra que não queira vir”, continua.
A enfermeira conta ainda a história de um pai que decidiu combater apesar de poder sair do país, uma vez que a lei marcial imposta pelo governo ucraniano dá essa permissão a homens com três filhos. “Tivemos um homem que acompanhou a esposa e os três filhos até Bucareste, fez a inscrição deles, tratou da papelada, fizemos a avaliação clínica e a testagem, levou-os até ao aeroporto e depois foi-se embora para combater. Assistir aquela despedida foi… não há palavras“, relembra, emocionada.
“Tivemos um casal, os dois já com alguma idade, já na casa dos 70 anos. Resolveram vir os dois e depois contaram a sua história de amor que era absolutamente maravilhosa. Pessoas que deixaram lá os pais porque os pais não queriam vir embora. Pessoas mais velhas querem lá ficar e eu consigo compreendê-los. Não querem sair, querem lutar pelo país e não querem agora com esta idade recomeçar a vida em outro sítio. Algumas nem sequer têm condições físicas para fazer a viagem até à fronteira”, acrescenta.
“Ver constantemente aquelas pessoas a passarem a fronteira com temperaturas negativas, com a vida dentro de uma mala ou restante vida, a que mais importa, a ter ficado para trás, não há palavras. E nós somos tão, tão abençoados e não temos a mínima noção“, afirma.
As condições de saúde que chegam à fronteira
A equipa médica estava preparada para situações mais graves, mas tal não aconteceu. “Feridos de guerra não chegam à fronteira. Tínhamos equipa para isso. Tínhamos material para isso, mas eles não chegam à fronteira. A equipa foi munida com tudo o que é material no sentido que é emergência para abordar uma situação quer de trauma quer de uma situação de paragem cardiorespiratória. Nós íamos equipados com todo esse material para conseguir dar resposta quer para as situações mais simples como a crise hipertensiva ou dificuldades respiratórias quer situações mais complexas, mas a verdade é que as pessoas mais lesionadas, mais graves, não chegam sequer à fronteira“, explica.
“Na fronteira, tivemos uma situação de uma senhora com uma neoplasia, que estava a tentar chegar a Milão porque o hospital dela em Kyiv, onde ia ser operada, foi bombardeado. Quando atravessou a fronteira teve um colapso emocional, por assim dizer, e estivemos a avaliá-la. Associado a isso tinha uma crise hipertensiva, estivemos a estabilizá-la himodicamente no sentido dela continuar a sua viagem. Houve também uma situação de um senhor com uma lipotímia”, acrescenta.
No sábado, iniciou-se a viagem longa – cerca de 10 horas de autocarro – de Siret para Sinaia. Nos pontos de encontro, que tinham sido combinados com os refugiados, apareceram pessoas que não estavam inscritas. “Mesmo não estando na lista, mesmo o avião estando aparentemente já lotado, foram aceites. O Miguel foi absolutamente incansável ao não dizer que não a ninguém. Portanto, quem aparecesse, haveríamos de arranjar uma solução“, explica. Em Sinaia, os refugiados dormiram todos em hotéis, sendo que alguns cedidos pelos próprios proprietários.
No domingo, o dia inteiro foi passado a receber refugiados. “Vinham a medo, no sentido de quase incrédulas de como é que vem alguém ajudar, que os vai levar de avião para outro país e diz que tem lá uma casa para eles. Depois conheceram-nos finalmente, estivemos ali cara a cara. Acho que o toque tranquilizou”, recorda.
Finalmente chegou a segunda-feira. O tão esperado dia da viagem para Portugal. “No aeroporto encontrámo-nos todos. Foram alguns momentos de despedida, emocionalmente pesada. Algumas pessoas estavam ansiosas por ir porque viriam encontrar família cá em Portugal, mas outras não conheciam ninguém e é obviamente mais triste. É muito triste o que todas aquelas pessoas estão a passar”, conta.
Os 229 refugiados foram testados para a Covid-19. Os casos positivos passaram a estar sempre de máscara e foram isolados ao embarcar no avião da TAP. “Seguimos as indicações da tripulação e da delegada de saúde. Foram os últimos a sair do voo e recebidos no aeroporto numa sala à parte”, explica.
“O voo mais surreal, fantástico e emotivo”
Sónia Sousa descreveu o voo como um misto de emoções. “Aquelas pessoas estavam a fugir. Não vão viajar. Estão a deixar para trás a sua casa, que provavelmente já não existe, em alguns casos. Algumas pessoas disseram-me que a casa deles já não existia, que o quarteirão, o bairro, já não existia. É absolutamente impensável… Fugir do nosso cantinho, do nosso lar, dos nossos amigos, da nossa família”, diz.
“Quando o avião descolou… Eu não consegui estar exatamente ali ao lado das pessoas porque eu quebrei emocionalemnte naquele momento. É que eu não consigo imaginar o que aquelas pessoas estariam a sentir. É surreal. São pessoas exatamente como nós, de todos os traços sociais, todos os traços económicos. São uma sociedade como a nossa. Poderíamos ser nós e estavam ali crianças da idade da minha filha”, confessa.
Apesar das barreiras linguísticas, houve muita comunicação. Como? “Usámos sempre o Google Tradutor para passar de português para russo ou ucraniano porque muitas pessoas só falam russo, a verdade é essa. Às vezes dei por mim quase a fazer mímica ou língua gestual para tentar saber se estava tudo bem, de conforto, de brincar”, explica.
O avião aterrou no Aeródromo Militar de Lisboa no dia 14 de março. “Abraçaram-se a nós a agradecer (…) Aquelas pessoas conseguiram fugir à guerra, vão sobreviver, têm uma oportunidade de recomeçar em segurança e com condições”, afirma.
Apesar de ter feito vídeo-chamada todos os dias com a filha, as saudades eram enormes. “Quando voltei, o primeiro abraço foi… sem palavras”, conta Sónia. A enfermeira, que continua a ajudar com bens essenciais as famílias refugiadas, ficou muito emocionada com o que Maiara lhe disse: “Obrigada mamã por estares a ajudar os outros meninos e os refugiados”. Com isto, resta dizer: missão cumprida!