A noite de Natal é, por norma, sinónimo de convívio, seja entre familiares ou amigos. É também nesta altura – considerada a época mais mágica do ano – que surgem algumas perguntas e comentários, aparentemente inocentes, que podem criar situações desconfortáveis para grávidas ou recém-mamãs.
Falámos com Susana Pereira Fonseca, psicóloga clínica especialista em Gravidez, Parentalidade e Desenvolvimento do Bebé e da Criança, que nos abriu o leque desta questão, nomeadamente o que não dizer para evitar constrangimentos, mas também o porquê de acontecer, o impacto que pode ter na mulher e como reagir nestes momentos mais delicados.
A psicóloga clínica, que também é mãe, também já ouviu alguns destes comentários que “são extremamente comuns e que se dividem em três temas muito centrais”: “O primeiro tem a ver com as práticas parentais e a forma como a mulher está a posicionar-se perante a gravidez. Temos comentários como, por exemplo, em relação ao pós-parto, ‘será que o teu leite chega?’, ‘achas que o teu leite é suficiente?’, ‘não devias dar suplemento’ ou então durante a gravidez: ‘porque é que estás a fazer assim ou porque é que vais fazer dessa forma? Isso não é bom para a criança’“, começa por explicar.
“Depois também temos os comentários acerca da imagem da mulher, da barriga ‘estar muito grande’, estar ‘muito pequena’ ou da mulher já ter aumentado muito o peso ou ter aumentado pouco. Isto durante a gravidez. E no pós-parto também existem muitos comentários acerca do peso que ainda não voltou ao que era antes ou que ‘a barriga ainda está muito grande apesar do bebé já ter nascido’“, continua.
“Há ainda os famosos comentários que são feitos de histórias que as pessoas ouviram de desfechos negativos que ocorreram durante a gravidez e no pós-parto. Situações de partos pré-termo, perdas gestacionais, perdas neonatais”, acrescenta.
“‘Não se apeguem porque não sabem até que ponto a criança vai nascer'”
Catarina, de 28 anos, teve uma gravidez de risco relacionada com a endometriose e ouviu comentários muito desagradáveis. “Um dos comentários que ouvi muito é ‘gravidez não é doença’, ‘isso não é doença nenhuma’ ou comentários do género ‘não se apeguem porque não sabem até que ponto a criança vai nascer’. São comentários que não se fazem”, relembra.
E os comentários não pararam no pós-parto. “‘Ele [o bebé] não pode fazer isto ou não lhe podem dar tanto colo. Não se deve dar tanto mimo, depois fica mimado'”, dá-nos como um dos exemplos. E relativamente a esta questão do colo, Susana Pereira Fonseca afirma que “a investigação mostra-nos claramente que isto não é verdade”. É um mito. “A ciência diz-nos claramente que não existe colo a mais, que não existe mimo a mais, que o colo, o mimo, o amor, não têm limites”, esclarece, acrescentando que uma das ferramentas importantes para as mulheres se protegerem deste tipo de comentários é exatamente a procura de informação científica.
“Diziam que o meu leite era fraco e que ela tinha fome”
Dana, de 30 anos, também passou por situações constrangedoras no pós-parto. “Quando a minha filha era bebé ela chorava muito e todos diziam que o meu leite era fraco e que ela tinha fome. No entanto, ela aumentava sempre de peso”, conta. E aqui está outro mito: “Não existem leites fracos”, afirma a psicóloga clínica, que já passou por um episódio semelhante. “Uma pessoa de família foi conhecer a minha filha e ela estava a chorar muito e eu até sabia porquê, porque já a conhecia o suficiente, e essa pessoa lançou para o ar: ‘Está a chorar tanto, será que o leite é fraco?’ E eu, que estava tão convicta que isto não me iria afetar em pós-parto, lembro-me de ter chegado para um cantinho e espremido as mamas para ver se tinha leite“, recorda.
Outros dos comentários que Dana ouviu foi acerca da saúde da criança. “Quando estava doente, os familiares tinham a mania de se armarem em médicos e ignorar o tratamento que ela estava a ter, ‘aquilo que se fazia no passado e que era bom'”, diz. Mas o que está por trás destas ações? Para Susana Pereira Fonseca, a sociedade tem a tendência de querer que o outro esteja informado, mas por outro lado, alguns comentários são proferidos “porque as pessoas também têm elas próprias ansiedades, medos e preocupações em relação à gravidez, ao pós-parto e ao nascimento dos bebés, à educação dos bebés. E portanto na comunicação com as grávidas e recém-mães passam esses seus medos“.
“Disse-lhe que dava demasiada comida ao bebé”
A psicóloga clínica conta-nos uma situação específica de uma mulher que está a ser acompanhada por si. “Disse-me que ficou muito magoada porque o avô dela, bisavô do bebé, lhe disse que ela dava demasiada comida ao bebé. Foi assim uma crítica que doeu muito“, conta.
“Quando começámos a desconstruir o que isto significava, na verdade percebemos que este senhor tem muito medo que o bebé fique com algum tipo de doença, como a obesidade ou diabetes. Portanto, ele tem muito esse medo, que é um medo dele, e não está a conseguir gerir, não consegue se calhar até ter a consciência de que o tem, não consegue autoregular-se e passa esse medo na comunicação para a neta, neste caso, que é a mãe do bebé”, explica.
“As mulheres já estão vulneráveis e estes comentários muitas vezes vão acentuar ainda mais as ansiedades, os medos, as preocupações“, diz, dando como exemplo a transição da transformação física da mulher. Através da sua conta de Instagram ‘Sementes de Amor‘, “uma das mães partilhou comigo que alguém lhe disse que ela ‘realmente estava grávida de duas gémeas meninas porque as meninas retiram a beleza à mãe’. Claramente essa pessoa estava a dizer que ela estava uma grávida feia e isto dói muito“, conta, referindo que estas ‘observações’ não desejadas podem afetar a auto-estima.
As ferramentas que precisa para reagir a situações desconfortáveis
Susana Pereira Fonseca acredita que o primeiro passo é pensar qual foi o impacto que teve e o motivo – e depois trabalhar nessas questões. “Se eu fico a pensar que o comentário que aquela pessoa fez significa que eu posso não ser mesmo capaz, tenho que pensar porque é que estou a sentir isso e pedir ajuda também nesse sentido. Isto é muito importante”, diz, sublinhando que há vários profissionais de saúde que também podem ajudar, incluindo as doulas e as enfermeiras parteiras.
Outro ponto importante é construir uma rede de apoio. Isto é, falar com profissionais que respeitem aquilo que estão a sentir e as orientem, mas também existir um companheiro ou companheira que consiga estabelecer alguns limites na relação com outras pessoas.
Eis uma possível estratégia: “Imaginemos que vamos para a casa dos sogros, pode ser difícil para a mulher definir limites nesta relação e pedir para não dizerem certas coisas ou para não estarem a insistir com certas coisas, mas pode ser mais fácil para o companheiro/a, que é o filho/a dos donos da casa, definir este limite. Os companheiros e companheiras podem ser uma ajuda muito útil”, exemplifica.
A psicóloga clínica considera que uma rede de apoio de outras mães também é muito benéfico. “As mulheres que estão a passar por experiências semelhantes conseguem apoiar-se umas às outras e, no fundo, construir quase um ‘muro feminino’ ou ‘muro das mães’ para se protegerem destes comentários e perceberem em conjunto que aquilo não faz sentido e que aquilo diz mais até sobre os medos e ansiedades da outra pessoa do que propriamente sobre o que elas estão a fazer”, destaca. A procura de informação fidedigna, científica e atualizada também é uma ferramenta de extrema importância.
“Comunicar de uma forma positiva aquilo que para nós é importante“
A primeira pergunta que se pode colocar e levar em consideração é: a pessoa em questão é uma pessoa próxima? “Se for um desconhecido na rua se calhar não vale a pena dizer nada. Talvez nunca mais o vamos ver. Nessas situações podemos até ignorar, tentar relativizar e informar-nos com quem de direito“, afirma.
Mas quando são pessoas relevantes na vida da mulher, a situação pode ser diferente. “O Natal é uma altura complicada neste tipo de questões porque a família junta-se quase sempre. Não há grande margem para fugir e surgem mais facilmente esses comentários. Na verdade, acho que temos que ponderar muito bem a relação que temos com aquela pessoa e tentar comunicar de uma forma positiva aquilo que para nós é importante. Muitas vezes estes comentários assentam numa vontade do outro até de ajudar, de partilhar informação, de nos pôr alerta de alguma informação que eles sintam que é relevante, devido às ansiedades deles“, explica.
“Muitas vezes aquilo que podemos fazer é dizer ao outro – caso sintamos que é necessário definir um limite – que compreendemos que esteja preocupado. Às vezes estes comentários assentam um bocadinho em falta de empatia porque estas pessoas não transmitem da melhor forma estas questões. Não ponderam o impacto que aquilo que dizem tem na mulher. Podemos fazer o inverso e mostrar empatia pelo outro e dizer qualquer coisa do género: ‘eu percebo que queres ajudar ou percebo que a tua intenção é boa’ mas depois dizer que não é isso que acreditamos ou não é isso que sabemos que é verdade ou que aquela informação nos está a deixar mais ansiosas ou mais preocupadas. Preferimos que não seja dito aquilo novamente“, esclarece.
De uma coisa, tanto Catarina como Dana, têm hoje a certeza: elas “é que são as mães” e “sabem o que é melhor para os seus filhos”. Claro, seguindo sempre as recomendações dos verdadeiros especialistas.