É diretora da SIC Mulher, que comemorou 20 anos esta semana, e numa entrevista exclusiva, fala sobre a luta que as mulheres em televisão ainda não ganharam, o machismo e a displicência masculina, o desafio particular de educar uma mulher – a apresentadora tem três filhas – as suas indignações, e o seu futuro muito próximo: a saída da TV.
A SIC Mulher obteve em janeiro o melhor resultado da última década.
JP: É verdade. Está a fazer excelentes resultados.
Quais são os desafios de estar à frente de um canal temático?
JP: Falta de orçamento. A SIC Mulher foi sempre um canal alternativo em matéria de formatação mais leve, mais singular, de conteúdos que não estão na generalista e isso está na origem e naquilo que é hoje a estação.
Atualmente estamos a fazer estes resultados e tem a ver, em particular, com a inserção da ficção. Veio dar uma frescura à antena [ocupando os espaços dedicados à repetição de programas] que não estão noutros sítios.
Uma das série é turca [The Boy].
JP: É turca. Há muita coisa falada em castelhano. O canal continua a ter uma singularidade e apresenta uma linguagem que tem a ver com o que precisamos na vida que é a leveza, desligar um pouco da informação ‘pesada’ , que hoje sabemos que não está simpática, dada a realidade atual. Os 20 anos são a maturidade.
Durante muito tempo houve muitas dúvidas sobre a possibilidade de pormos ficção, mas correu bem e vai continuar com certeza.
Aos 20 anos, quem era a Júlia? Ainda não tinha feito televisão.
JP: Por acaso já. Aos 19 anos. Fiz um programa horrível, o pior programa de televisão de sempre, exibido na RTP.
Era aquele de música?
JP: Era. Era muito mau, muito mau. ‘Estamos Nessa’. E aos 20 anos, eu era insuportável. Era extremamente focada- de uma maneira que devia ser amarrada- na ideia de construir o meu caminho para chegar à carreira.
Eu já era jornalista. Foram dois anos de estágio na RDP, sem ganhar dinheiro. Era muito alegre, insuportavelmente alegre, falava mais alto do que falo hoje, ainda não tinha encontrado o verdadeiro amor, mas tinha sido muito namoradeira até aí.
A Júlia passou por todos os horários na televisão, exceto a madrugada. Esteve em publishing, foi diretora de conteúdos e está à frente de um canal temático. Há sete anos, falava na ausência de mulheres em cargos de poder efetivo. Pergunto-lhe se isso hoje…
JP: Não mudou nada. Estamos a ser muito mais lentos do que deveríamos. Já se mudou muita coisa, mas continuo a achar que atingimos o glass ceiling [‘teto de vidro’, em tradução live, a barreira invisível que não permite que indivíduos não progridam aos mais altos níveis no mundo laboral].
Nós chegamos até às chefias, as últimas da hierarquia, antes dos conselhos de administração, das Comissões Executivas. Nós conseguimos subir isso tudo, somos altamente eficazes, temos quase sempre uma relação de paridade com os nossos colegas masculinos, mas depois quando chegamos às decisões na parte mais alta da nomenclatura, não entramos ou com grande dificuldade entramos.
É uma pena porque o nosso contributo seria interessante. Nós somos especialistas em momentos de crise, temos um sentido pragmático. Mas digo-te que, sete anos depois dessa entrevista, o caminho está longe de ser feito. Na minha geração, muitas coisas que para mim não entendi como discriminatório ou machismo, hoje, aos 60 anos, penso que se calhar existiu e não reparei. E é chato.
Ou seja, como não reparou , não foi um impedimento para agir por si mesma, mas…
JP: Sim, nunca me disseram ‘não fazes isto porque és mulher e à tua frente vai um homem’. Mas falo em outros gestos, outras observações. Na forma como foram acolhidas sugestões, algumas metodologias nos processos de decisão. Havia ali alguma displicência masculina.
“Percebi que quando perdesse essa frescura, rapidamente era chutada para casa“
Essa decisão de enveredar também pela estrutura do negócio da televisão, chefiando equipas de conteúdos, surgiu como uma preparação da sua carreira ou uma curiosidade nata?
JP: Ainda antes de ser executiva de qualquer estrutura em televisão – começou na TVI aos 40 anos – eu tive a perceção muito cedo, talvez porque vivíamos num universo muito dirigido por homens, que a minha carreira à frente das câmaras teria de acabar.
Nesse tempo, e hoje continua um bocadinho, muitas das escolhas feitas para a antena tinham a ver com a beleza, com aquilo que faz parte da frescura de um corpo, um determinado tipo de mulher e eu não configuro nesse modelo. Percebi que quando perdesse essa frescura, rapidamente era chutada para casa.
Achei que era de bom senso preparar um caminho para ficar nos bastidores e quando fiz as minha mudanças mais estruturantes do meu percurso (saiu da SIC, passou para a RTP e depois para a TVI) negociei sempre para ter isso como prioridade.
Comecei como subdiretora de novos formatos. Apaixonei-me e vi que a minha intuição estava certa. E quando vim para cá (SIC), também era para continuar como executiva, já que pensava ‘daqui a nada estou fora da antena’, e afinal ainda aqui ando. Tenho 60 anos. Mas não é a idade, nem a beleza que nos define.
Foi o conhecimento pragmático daquilo que é o terreno. Enquanto der estarei por aqui.
Tem três filhas.
JP: E duas netas! ‘É muita mulher’, diz o meu marido.
Há alguma particularidade de educar uma futura mulher nos dias de hoje, face aos anos 80 ou 90?
JP: Ai, acho que há! Na geração, quer da minha enteada Sofia e da Carolina e Matilde, a minha grande preocupação, enquanto mãe e educadora, era a independência. Ser independente economicamente e autodeterminada porque estar dependente de uma relação, menoriza.
Eduquei-as nesse sentido e as ameaças que vieram, que foram muitas, como é conhecido, de outro tipo de quadrantes. Vejo agora com as minhas netas, que a Sofia tem outras preocupações enquanto mãe, e uma delas é educá-las no contexto de um mundo que se espelha pelas redes sociais.
Não só da autoestima, a acessibilidade àquilo, fazer-lhe entender o que é aqui, entender o valor. Para nós a realidade das redes sociais é um mundo paralelo, para esta nova geração pode haver uma comparação de planos.
E preocupa-me também a questão da banalização na nudez e do corpo feminino. A própria moda cultiva isso, a própria cultura reflete isso. Se não estamos suficiente despidos, se não há rendas ou transparências ou decotes...
“Senti-me tão enganada que nunca mais militei coisa nenhuma“
Tem histórias fortes no seu programa. Já falou de como muitas vezes essas histórias a impactam quando vai para casa. Sempre teve uma conduta algo irreverente e um espírito combativo. O que é que a indigna como cidadã? Já se desiludiu?
JP: Sim. Já contei, é público e não tem nenhum problema. Quando foi a despenalização do aborto, envolvi-me muito na campanha. Militei. Andei a recolher depoimentos, andei ombro a ombro com o grupo da sensibilização dos media para o tema, e isso trouxe-me um momento de grande constrangimento.
Foi em frente à Assembleia da República (4 de fevereiro de 1998), numa manifestação, no dia da votação. Fizeram-se duas barricadas, de um lado estava eu com a Rita Blanco, a Inês de Medeiros, a Margarita Pinto Correia e do outro lado, uma série de senhoras também, a maior parte do colégio dos meus filhos, muito ligadas à campanha pelo lado católico.
Aquilo passa (o projeto de lei do PS) e vi a Odete Santos caída no chão, tão emocionada que desmaiou. Os miúdos usam esta palavra à toa, mas foi de facto, épico. Eu entrei no táxi [entusiasmada], peguei no telefone, liguei para o meu marido e disse-lhe ‘isto vale a pena, a cidadania! Vamos mudar o mundo. A lei passou”.
O meu marido disse ‘não te convenças. O Marcelo [Rebelo de Sousa], na altura líder da oposição, já tem tudo combinado com o [António] Guterres e já está tudo feito para que a lei tenha que ir a referendo’. E foi. No primeiro referendo, tombou. E nesse dia, senti-me tão enganada, mas tão enganada, que nunca mais militei coisa nenhuma. Foi a única e derradeira vez.
“A minha vida pública termina em dois, três anos“
E hoje? Onde canaliza o debate? É com o marido, com amigos e na mesa de voto?
JP: Sim, eu tenho a sorte de ter amigos que têm pachorra para me ouvir, mas neste momento canalizo muito disto tudo num grupo de gente destravada no podcast ‘A Noite da Má Língua’, onde há muito disto. Seja a rir ou até num tom propositadamente leve com um grupo de sexagenários, que é tão saudável, e sai aqui no programa [Júlia].
Um comunicador que fala para toda a gente não deve, na minha opinião, deve falar para uns, e quando o faz, tem que o fazer de forma que todos o entendam. Indigno-me em situações que têm a ver com pobreza, falta de acesso a saúde e falta de proteção a pessoas com deficiência.
Uma coisa que me deixa doida. É o encerramento de maternidades. Mas que trampa de país é este? País que tem a demografia a decrescer. Eu se tivesse grávida agora, tinha um dilema desgraçado. Onde é que eu vou ter o meu bebé?!
Nós contribuímos com impostos altíssimos e não há garantia de segurança para as crianças nascerem? Uma vergonha. Deixa-me fora de mim. E quem diz isso diz as condições dos idosos, coisas que estão na constituição. O direito à habitação…
Com 60 anos, já olha para uma nova fase após a televisão. Depois de sair da frente das câmaras, tenciona retirar-se também do lado dos conteúdos?
JP: Eu não sei o que a Impresa (que detém o Expresso e a SIC) tem para mim. No dia em que sair da antena, a minha vida pública terminará. Termino a minha vida pública com este programa [Júlia], a não ser que apareça outro formato.
Uma coisa que me dá prazer é o mundo dos podcasts, que no fundo é a minha primeira pele, a rádio. Desenvolvo outros, tenho projetos nesse sentido. Vejo-me a fazer isso, mas a minha vida pública termina em dois, três anos.
E vou felicíssima. Não ter de me maquilhar todos os dias… Estou farta de ter tinta na cara (risos). Estou a falar do processo de liberdade. As pessoas não têm noção porque a nossa vida para o espetador é instagramável e glamorosa, o compromisso diário do daytime, de vires num determinado horário para não comprometeres toda a linha de montagem, de indústria.
Eu não posso chegar cinco minutos mais tarde porque se não ponho em causa o trabalho desta gente toda. O respeito que tenho que ter por isso… e tenho. Eu nunca chego tarde a lado nenhum, é uma coisa horrível. Eu sou a primeira a chegar a um velório, antes do morto, até irrita (risos)
É sobejamente conhecida por não gostar de atrasos.
JP: Eu dou broncas a toda a gente porque é uma disciplina. Eu não me posso atrasar. Mas estou muito cansada, eu tenho 20 anos de daytime, e cada vez que falto fico completamente torcida porque sinto que estou a faltar a um compromisso que é muito sério. E que é o meu. Mas estou muito cansada dessa obrigação diária de não ter a liberdade de ter um impulso. Só o posso ter ao fim de semana ou nas férias que são muito magrinhas. Quando estão a começar, já acabaram.
Vim sempre a trabalhar na pandemia. Quando a covid-19 metia muito medo nós vínhamos e não sabíamos o que ia acontecer. A espontaneidade do dia a dia ou o que acontece em algumas atividades de ‘eu hoje não vou’ ou ‘trabalho de casa’.
Vai ter mais tempo para ler… O que é que está a ler agora?
JP: Acabei dois livros que me encheram as medidas. Um é ‘A Mais Secreta Memória dos Homens’ do Mohamed Mbougar Sarr. É sobre questões coloniais, é um tema muito falado lá em casa. E o outro – eu leio num fim de semana, um livro – ‘Um Cão no Meio do Caminho’, de Isabela Figueiredo.
Comecei o ‘Lições’, de Ian McEwan, mas não estou muito entusiasmada.