Nascida e criada na ilha da Madeira, mais propriamente na pequena e humilde localidade de Santo António, Vânia Fernandes é uma das cantoras nacionais de quem é difícil não reconhecer a voz. Em 2008, venceu a Operação Triunfo, logo depois o Festival da Canção, alcançou o 13.º lugar na Eurovisão e imortalizou na história da música portuguesa a inconfundível canção Senhora do Mar: o tema que voltou a ouvir-se ser ecoado, 16 anos depois, no mais recente projeto de ficção da SIC.
Mas quem é esta artista de que o país e o mundo têm o prazer de ouvir cantar? O site da SIC Mulher, justamente no mês que homenageia as mulheres, decidiu conhecer o passado e o presente de Vânia Fernandes numa longa entrevista que promete desvendar os segredos de uma carreira artística que deu e dá muito que falar. Uma conversa que teve como fundo o mar da praia de Carcavelos e que levou a cantora portuguesa a revelar o que, ao fim de vários anos longe dos holofotes, nunca tinha revelado.
O crescimento e a descoberta da paixão e do talento para a música: “Fui logo exposta a uma vida artística bastante ativa“
Vânia Fernandes é hoje uma mulher que guarda “memórias muito felizes” da sua infância. Filha de pai e mãe que considera “os melhores do mundo“, partilhou o seu crescimento com as duas irmãs mais velhas. Uma infância, segundo o que descreve, vivida em pleno na sua terra natal. “Sempre fomos muito artísticas, fazíamos ‘teatrinhos’ umas para as outras, organizávamos espetáculos no terraço. Lembro-me de ser uma chata que andava sempre atrás delas“, começou por revelar.
Desde tenra idade que a veia artística se começou a revelar. Aos três anos de idade já lhe perguntavam o que queria ser quando fosse grande e a resposta já estava na ponta da sua língua: “Eu quero ser cantora, mas a minha mãe não me deixa“, dizia, tomando hoje a consciência de que era uma resposta “tonta“. Inclusive, por aquela altura, já recebia de “uns vizinhos“, de quem frequentemente ouvia “a Vânia não se cala“, microfones para cantarolar horas a fio no terraço da casa onde habitava com a família.
Os anos passavam e a paixão pela música crescia. Embora nunca tivesse tido a possibilidade de entrar num festival infantil da região, por não ter uma ligação próxima com “compositores ou letristas“, Vânia Fernandes acabou por mostrar-se localmente, pela primeira vez, aos 12 anos. Na altura, o Cantigas da Rua tinha chegado à ilha da Madeira e eis que marcou a primeira aparição da artista que já estava em ascensão. Mesmo assim, acabou por não ser uma das participantes selecionadas. Foi o primeiro ‘não’ de vários ‘sins’ que viria, mais tarde, a colecionar.
Meses depois, através de um anúncio da sua Junta de Freguesia, Vânia Fernandes decidiu inscrever-se num concurso local que iria percorrer todas as freguesias do Funchal. Decidiu interpretar Chamar a Música, uma das músicas eternizada por Sara Tavares, e, embora não tivesse vencido a competição, a verdade é que o abrir-se de portas começou precisamente aí.
“Fui logo exposta a uma vida artística bastante ativa. Aos 12 anos, tinha uma vida ativa e dupla. Ao fim de semana tinha sempre espetáculos e depois comecei a fazer parte do Madeira em Festa, um espetáculo itinerante pelas freguesias. Portanto, acabei por ter essa vida dupla: a escola e cantar ao fim de semana“, contou.
Ainda em plena infância, a viver dias felizes, não foi difícil para Vânia Fernandes reconhecer a intrínseca paixão e o talento que vinha a despoletar para a música. “Não sei explicar, era mais forte do que eu. Era uma coisa super natural para mim. Depois de ter tido aquela primeira oportunidade a cantar em palco eu conseguia visualizar que ia fazer daquilo a minha vida“, confessou.
Quanto a formação musical era algo “um bocadinho distante” da sua vida e das suas possibilidades. Tudo o que aprendeu foi “muito por intuição” e por ir ouvindo vários artistas. Somente aos 17 anos é que se abriu a oportunidade, até devido à “mudança de voz“, de ingressar no Conservatório de Música. Até lá, assumindo-se uma boa aluna, frequentou o ensino ‘normal’, porém os seus sentidos já apontavam numa única direção: a música.
“Tinha uma professora que me incentivou a tirar um curso em línguas e a depois seguir música. Havia também este preconceito, como infelizmente ainda há, de que realmente a música pode não ser um futuro certo. Pode não ser um curso à séria. Mas na minha cabeça estava muito resolvido“.
A participação na Operação Triunfo, no Festival da Canção e a chegada à Eurovisão
Com a vontade de ser artista de música bem definida na sua cabeça, eis que começaram a surgir os primeiros reconhecimentos. Até ao ano de 2007, Vânia Fernandes conseguiu apresentar-se ao mundo do jazz; cantou com bandas ao vivo, fez arraiais; percorreu vários géneros musicais, do pop ao rock e fado; fez parcerias com grandes nomes da música portuguesa, como com o pianista João Resende, e ainda ingressou numa orquestra europeia.
A ascensão estava, de facto, a acontecer, mas foi com a participação na Operação Triunfo que a sua visibilidade alcançou níveis que até antes nunca tinham sido vividos por Vânia Fernandes. Com um percurso de se tirar o chapéu, a artista acabou por, aos 23 anos, vencer o programa de talentos da RTP.
Dali até subir ao palco do Festival da Canção foi num ápice. Em 2008, meses depois de ter vencido a Operação Triunfo e ainda numa autêntica euforia, entre entrevistas, viagens entre a Madeira e Lisboa, e uma série de concertos, a cantora madeirense recebeu o contacto de que, nem nos seus melhores sonhos, estaria à espera.
“Recebi um contacto de uma pessoa que me estava a convidar para o Festival da Canção e achei, na verdade, sinceramente, que aquilo devia ser treta. Não devia ser verdade, principalmente para o próprio ano. Achei que não deveria de ser…“. Mesmo cética, foi com a ajuda do atual marido, na altura namorado, que decidiu dar uma oportunidade àquele que viria a ser o contacto que marcaria para sempre parte da sua vida.
O homem que estava por detrás daquele ‘desassossego’ era Carlos Coelho, o autor e produtor da canção Senhora do Mar, e que já tinha feito parte de equipas da Eurovisão noutros países. Mas eis que a artista decidiu dar um voto de confiança e ouviu pela primeira vez a maquete do tema num jantar na companhia de alguns cantores que viriam a fazer parte da sua equipa na participação, mais tarde, no Festival da Canção.
“Ouvi uma versão em inglês, num ritmo completamente diferente, li a letra em português, pareceu-me bem, mas a música, francamente, achei aquilo tudo muito estranho. O ritmo era uma espécie de rumba e achei aquilo meio ultrapassado, meio antigo. Eu sempre cantei repertório antigo, mas achei aquilo muito antiquado, muito estranho“, confessou Vânia Fernandes.
Depois de várias peripécias, a cantora recebeu o arranjo da Senhora do Mar em mãos. No estúdio de gravação que considera “o melhor da Madeira“, foi onde tudo, primeiramente aconteceu. “[Ele] trouxe o arranjo e foi gravada a maquete que se ouve hoje na novela. Foi mesmo a minha primeira abordagem à música. Não sabia ainda bem como encaixar as palavras, mas gravei. Ouvi e achei aquilo tudo realmente muito grandioso e muito bonito“, revelou.
Carlos Coelho foi assim, o nome, do homem que reconheceu o talento de Vânia Fernandes e que “de uma forma muito natural” confiou cegamente na artista. “Foi por acaso que o Carlos me convidou, mas longe da minha ideia, e não estou a ser minimamente falsa, com todos os poros do meu corpo, ganhar“, disse ainda.
Com este pensamento, Vânia acreditou que “aquele espalhafato todo ia acabar por acalmar e a vida normal ia acontecer“. Algo que aconteceu, na verdade, totalmente ao lado. A cantora, juntamente com a voz de Jéssica, Eveline, Joana, Luís, o marido, e Jonas — quem considera que foram “quase” a sua alma ali —, acabou por vencer o Festival da Canção com mais do dobro de votos do segundo classificado.
“Eu acho que nunca sequer me atrevi a sonhar com isso. Nunca tinha sequer ousado pensar em concorrer, porque grande parte das canções que cantei, principalmente numa fase inicial da minha vida, foram do ‘Festival da Canção’. E, de repente, estar ali… eu não pensei muito nisso, ainda bem, porque se eu pensasse tinha tido um ataque de ansiedade“, afirmou.
Dali até ao palco da Eurovisão foi, como muito se diz na gíria portuguesa, ‘um saltinho’. Associada a toda a participação, ficou desde logo marcado “um lado místico muito interessante com o número 13“. “Nós saímos de Portugal no dia 13 de maio, ficámos 13 dias lá. Quando passámos à final foi feito um sorteio, fomos a 13.ª canção a atuar na final e ficámos em 13.º lugar. Portanto, há aqui um simbolismo muito interessante com o número 13“, revelou Vânia Fernandes.
A cantora acabou por descrever toda a experiência como algo que a terá marcado para sempre, mas também “muito confuso“, pelo simples facto de estar “muita coisa a acontecer“. “Acima de tudo, o que mais trago são mesmo as pessoas. Os fãs acarinharam-me muito. Trataram-me como uma rainha. É mesmo como todas as mulheres devem ser tratadas“, confessou.
O facto é que todo este ‘sonho’, que se desdobrou entre a Operação Triunfo, o Festival da Canção e a Eurovisão, e que acabou por se tornar realidade “foi mesmo por acaso“. “Algumas das melhores coisas que me aconteceram foi mesmo muito natural, que eu quase não tive de escolher“, partilhou ainda.
Terá sido este o apogeu da carreira de Vânia Fernandes?
A cantora não esconde que já chegou a pensar sobre se toda esta gigante experiência foi o ponto mais alto da sua carreira. Porém, não conseguiu chegar a uma resposta concreta. “Quando eu estava lá, senti isso. ‘Se calhar isto já é o máximo, se calhar não há nada depois disto’. Mas depois ao mesmo tempo, penso: fazer um concerto em Paris, com o Júlio Resende, como já tive oportunidade de fazer, para mim é tão gratificante e uma oportunidade tão mágica como fazer um arraial lá numa terrinha na Madeira, numa região ‘pequenina’, e com um som super humilde“.
“O que eu sinto é que a experiência que eu fui acumulando e vou acumulando e a pessoa que hoje eu sou, é claro que eu não posso nunca ter identificado aquilo como o meu apogeu, porque estou sempre a crescer. O meu apogeu vai ser quando eu tiver quase a partir“.
O presente e as críticas à indústria discográfica: “Tinha o sonho de conseguir fazer uma carreira a cantar as minhas músicas“
Se a visibilidade trazida pela televisão acabou por abrir mais portas no mundo da música a Vânia Fernandes, essa foi uma questão mais ponderada e com mais apontamentos críticos por parte da cantora. “Eu não posso dizer que me trouxe discos e uma carreira discográfica“, apontou. Contudo, Vânia Fernandes não pode negar que a Senhora do Mar lhe trouxe “mais trabalho” e confirmou que ainda na atualidade é “convidada para muitas coisas que procuram essa canção“.
Por outro lado, a artista madeirense reconhece que trabalhou muito “para continuar a ter esse reconhecimento artístico” e deixou a certeza de que continuará a trabalhar. “Não fiquei à espera de frutos do nada“, garantiu.
Hoje, porém, divide a sua vida profissional entre a música e a educação, já que leciona no Conservatório de Música, na Madeira. Apesar de confessar que gosta do que faz, não esconde o facto de ter tido “uma expectativa” de ir mais longe no mundo da sua grande paixão: a música. “Tinha o sonho de conseguir fazer uma carreira a cantar as minhas músicas, só que realmente foi uma coisa que acabou por não acontecer“, disse, revelando que tudo fez para que esse seu desejo não se ficasse por ali.
“Continuei a cantar vários estilos de música, mas tinha de o fazer, senão não sobrevivia, porque vivia da música na altura. Mas eu fiz tudo, mandei para todas as agências, falei com os agentes… só que quando tu não tens essa máquina a divulgar o teu trabalho é difícil“, contou Vânia Fernandes.
Na verdade, a cantora chegou a gravar um disco, de música portuguesa com influências do jazz e do fado. É, na prática, um disco de música do mundo e, segundo a própria, “houve uma grande dificuldade por parte de quem o vendia, de quem o agenciava, de o catalogar. Não tenho nenhum tipo de arrependimentos e tive a oportunidade de trabalhar com pessoas incríveis, mas não tive a sorte, a bênção, a oportunidade, de fazer muitos concertos com ele nem creio que tivesse sido muito divulgado“.
Mesmo assim, para a artista, “está tudo bem“, porque tem a consciência de que continuou “a fazer coisas“, embora tenha construído uma opinião muito própria sobre o universo que rodeia a música. “É verdade que desacreditei um bocadinho da indústria discográfica, porque percebi que se tu não tiveres a agência e o staff certo para levar o disco a algum sítio, não adianta teres o melhor disco do mundo, porque não vai chegar às pessoas, não vai passar nas rádios“, afirmou.
“O público reconhece e continua a apoiar-me e a dar-me palavras de carinho“
Sobre se se sentiria esquecida, Vânia Fernandes garantiu que “não“. Isto porque o “motor” que sempre alimentou a sua carreira de artista foi quem desde sempre admirou a sua voz. “O público reconhece e continua a apoiar-me e a dar-me palavras de carinho e a prova disso é, 16 anos depois, a Senhora do Mar ser genérico de uma novela“, partilhou a artista, entre rasgados sorrisos.
A produção da SIC levou assim, a Senhora do Mar — não apenas a narrativa como também a própria canção — de novo às ‘luzes da ribalta’. Porém, mais de um quarto de século depois, é difícil para Vânia Fernandes não encontrar alguns “defeitos“. “Eu detesto ouvir-me. Sou a minha principal crítica. Mas é muito bom, claro que sim. É quase sentir um voltar a casa. É uma bênção muito grande“, rematou por fim.
Veja ainda abaixo mais algumas fotografias de Vânia Fernandes:
Créditos: André Stachel